As entrevistas preliminares na clínica contemporânea | Bernardo Mantovani

As entrevistas preliminares na clínica contemporânea

Bernardo Mantovani

Lacan costumava dizer em seus seminários que o psicanalista precisa ser um homem de seu tempo, o que convoca a pensar que a escuta psicanalítica deva sempre considerar a cultura e o contexto histórico em que o sujeito está inserido. Sendo que as novas formas de subjetivação presente na atualidade vêm exigindo da psicanálise uma constante reinvenção teórica e prática, na tentativa de dar conta dos novos males que assolam o sujeito na cultura, é imperativo que o analista se ponha também em um constante questionamento.

Partindo-se da constatação de que hoje, no cenário da clínica psicanalítica, a dificuldade de adesão dos pacientes ao tratamento é um fenômeno que clama por um olhar mais atento do psicanalista, parece ser justificado que novas construções acerca das entrevistas preliminares possam ser discutidas. A verificação de que as novas formas clínicas são caracterizadas por um esvaziamento do simbólico, onde a alteridade está problematizada, e o sujeito se apresenta em uma relação muito específica com o saber, invita que se ponha sob a lupa este primeiro momento em que o futuro analisante se apresenta ao psicanalista.

Nas entrevistas preliminares da clínica contemporânea, portanto, existe um nó. Este enodamento de difícil resolução, convida o pesquisador a produzir um novo significante que dê conta deste real. Este estudo propõe que o cruzamento teórico relativo às entrevistas preliminares, com as novas formas de subjetivação na contemporaneidade, possa resultar em uma produção que dê conta deste enigma. O intento de que este escrito resulte em novas recomendações que venham nortear a condução das entrevistas preliminares pode parecer um tanto pretensioso, mas é preciso que o pesquisador se aventure na escrita, tendo em vista, em seu horizonte, que jamais alcançará um saber totalizador. A singularidade da pesquisa psicanalítica por si só já serve de apaziguador ao afã de saber, quando lembra que a psicanálise, por trabalhar com a impossibilidade de previsão do inconsciente, não poderia jamais exigir uma sistematização completa e exclusiva. Freud já alertava, em vários artigos, e em momentos diferentes de sua obra, para a inadequação de um raciocínio hipotético-dedutivo, de uma racionalização causal e antecipadora daquilo que se apresenta ao psicanalista.

Conforme Mannoni (1980) a primeira entrevista em psicanálise quase sempre não passa de uma preparação, de uma ordenação das peças de um jogo de xadrez, onde tudo fica para se fazer mais tarde, porém os personagens já estão sendo postos em campo. Esta analogia preconiza que, tanto no referido jogo, como nas entrevistas preliminares, os primeiros movimentos serão determinantes no desenvolvimento ulterior e nas possibilidades que se abrirão e/ou se fecharão no desenrolar do processo. Tomando a subjetividade do sujeito contemporâneo como um protótipo para se pensar as entrevistas preliminares na clínica atual, segue-se uma tentativa de discussão a respeito de um manejo técnico mais apropriado deste primeiro encontro do sujeito com seu eu, ou melhor, com sua própria ficção.

Lê-se nas teorias das entrevistas preliminares que o sujeito, em um primeiro momento, se depara com uma ruptura narcísica que o levará até um analista, recorrendo a um pedaço de saber que de conta de seu sofrimento, já supondo previamente que ali encontrará um Outro que saiba sobre o significado de seu mal-estar. Ocorre que se o Outro está problematizado no sujeito contemporâneo, este processo de subjetivação e endereçamento do sintoma entra em colapso. Verifica-se que o sujeito de nosso tempo se apresenta na clínica com uma queixa – se há uma queixa, quando às vezes nem isso – que não lhe remete a nada a não ser à própria queixa, o que denuncia claramente o fracasso da dimensão simbólica, e conseqüentemente da transferência. É legítimo pensar, portanto, que o sintoma está longe de representar um enigma para o sujeito, e que o analista se encontra aí em uma posição puramente especular e não de alteridade, como seria desejável. Neste dispositivo imaginário, neste “encontro de corpos”, como expressa Lacan (em Wachsberger, 1989), qualquer movimento que provoque um deslocamento na imagem, será vivido pelo sujeito com tamanha angústia que terminará por afastá-lo da experiência analítica. É preciso asseverar que se o tome, enquanto sujeito discursivo, como mestre, onde qualquer equivocação de seu saber lhe dificultará seguir em seu empreendimento. A equivocação do saber do sujeito neste primeiro tempo, no abalar de sua certeza imaginária, poderá se revestir de um caráter mutilante, dadas as insuficiências simbólicas com que ele está aparelhado. Investindo falicamente o sujeito referente ao seu saber, a algo que lhe seja particular, e não genérico, estar-se-á oferecendo uma solidez substancial para que sejam atravessadas as primeiras entrevistas.

Considerando que na contemporaneidade, imaginariamente, o saber está ao alcance de todos, pelos incontáveis meios de pesquisa disponíveis no social e pela horizontalidade das relações, o indivíduo que vem buscar uma análise – e que vem geralmente pela indicação de um médico, ou qualquer outro que ocupe o lugar de mestria – põe-se a interpelar alguém na demanda de um saber técnico, objetivo, prático, e não alguém que seria portador de um saber acerca de sua verdade, que daria conta dos enigmas da vida. O analista, se apresentando com um saber desta ordem, fazendo semblante de possuidor das respostas, não estará remetendo o sujeito a seus enigmas, muito menos fazendo surgir a dimensão do desejo do Outro. Estará sim, sendo vivido como alguém que não diz nada, que não tem nada a oferecer, coisa não rara de se escutar daqueles que decidiram por não seguir a empreitada freudiana, e que denunciam o não enlaçamento transferencial. Por outro lado, se responder à demanda ao ofertar um saber técnico e objetivo, o analista estará sendo capturado no gozo do paciente e respondendo desde um lugar objetalizado. Cabe situar aqui que a suposição do saber, não se dando mais pelas vias das formações do inconsciente, daquilo que estaria oculto nos sintomas do paciente, vem exigir que se desloque o lugar do analista para lá, onde se dê a entender ao paciente, que existe um olhar sobre o seu sofrimento, sobre sua condição de padecimento subjetivo, condição esta rejeitada pelo Outro da cultura. Recomenda-se portanto ao analista, apresentar-se como alguém que reconhece a dor e/ou o sofrimento do sujeito, facilitando a diminuição das resistências e a paranóia do paciente frente ao saber do outro, promovendo também o estabelecimento da trasnferência.

O uso de interrogativas por parte do analista, no intuito de recolocar o sujeito em relação a sua queixa, de fazê-lo se deparar com sua implicação naquilo de que padece, acabará por produzir um excesso de angústia, já que as perguntas jogam o sujeito no campo da não representação e da castração, quando não consegue responder ou associar os elementos discursivos e/ou se deparar com o não saber, posição em que o sujeito contemporâneo não se encontra habilitado para ocupar. O silêncio analítico por sua vez, como recomenda Freud (1913/1969) em relação ao ensaio preliminar, onde se deixaria o paciente falar quase todo tempo, e que colocaria o sujeito em confronto com seus próprios enunciados, pode produzir efeitos negativos ao processo. Estando excluída a dimensão do Outro e considerando a miséria subjetiva na atualidade, o silêncio dentro da sessão, conforme Lutemberg (2003), pode não estar apontando a força do recalcamento e as resistências transferenciais, mas sim, representando o vazio mental onde o sujeito se depara com um buraco que não o remete a outra coisa senão a um nada. O autor segue com o pertinente questionamento a respeito de como se poderia intervir de forma a ordenar o caos semântico que emana do contato direto com estes analisantes, na tentativa de selecionar os signos clínicos relevantes com fins terapêuticos. A dificuldade de tais sujeitos em selecionar fatos e construir símbolos que estabeleçam vínculos causais entre os fatos, juntar cisões e gerar adições psíquicas, torna árdua a tarefa de engate transferencial, onde o analista não estaria sendo colocado no lugar de sujeito suposto ao saber inconsciente do paciente.

A constatação de Fleig (1994), de que a nossa sociedade produz o não ligado e o esvaziamento do espaço e do tempo, vem corroborar com o que parece ser o desafio do psicanalista no manejo das primeiras entrevistas clínicas com o analisante. O procedimento parece dever se desenrolar em uma lógica que ofereça uma possibilidade de resituar o sujeito na sua história e ajudá-lo a tecer redes significantes que possam produzir e/ou restabelecer a dimensão simbólica de seu sofrimento. As referidas recomendações de que há de se ter cautela com as perguntas e o com o silêncio, por estes remeterem à castração e ao vazio, e não mais ao recalcado, apontam para um manejo que vai mais pelas vias de um trabalho de tecelagem. Intervir neste primeiro momento de modo a ligar os pontos, construir pontes no arquipélago sígnico, trançar e cruzar os fios no tecido simbólico, parece ser uma forma de se dar um ordenamento, um contorno ao caos semântico que o sujeito vem apresentar em seu discurso inicial. Tendo se construído este esboço, feito algumas amarragens significantes, que o sujeito não era capaz de fazer por si só, pode-se supor que venham a se produzir condições para que o sintoma seja subjetivado e endereçado ao Outro, estabelecendo então o laço transferencial. É preciso que se cogite a hipótese de que o sujeito contemporâneo não suponha um saber inconsciente sobre seu sintoma, sendo que caberia ao analista ir lhe apresentando esta possibilidade, para que, então sim, ele possa trocar a demanda de alívio do sofrimento para uma demanda de saber sobre o seu sintoma. De outra forma, ao solicitar a subjetividade sem estas considerações, corre-se o risco de produzir efeitos cada vez mais anônimos e vazios.

A cultura do imediatismo, como corolário dos avanços tecnológicos, sobre tudo a virtualidade do tempo e do espaço, acaba por instalar no fantasma do sujeito contemporâneo a idéia de não se ter tempo para nada. Nesta feita, cabe ao analista estar prevenido para não cair na demanda imediatista por atendimento e cura que os pacientes vêm fazer nas primeiras consultas, o que não significa que a demanda não deva ser acolhida. A demanda não está ali para ser respondida, mas sim acolhida, o que sugere importância em fazer ausência a todo e qualquer protocolo pré-estabelecido por parte do analista, além de se prestar a certa flexibilidade para aceitar o demandante do jeito que ele se apresentar. Todavia, pondera-se que o psicanalista não deva estar totalmente alienado do discurso do mestre e das demandas da cultura, conferindo importância em ser arguto para fazer a escuta desde os primeiros contatos com o paciente.

A pouca tolerância à frustração, assim como a fragilidade dos laços sociais, tão característica da subjetividade pós-moderna, vem reforçar o entendimento de que o trabalho do analista no início das análises faz apelo a uma posição mais ativa e intervencionista, porém a construção deste lugar de escuta não deve ser confundida com uma presentificação do analista enquanto sujeito, nem que este empreste seus significantes, como se costuma dizer. É preciso pensar que se possam utilizar significantes da cultura, do social, e do próprio discurso do paciente para este intento. Transitar pelo imaginário nas entrevistas preliminares, um imaginário instrumentalizado, dando uma sustentação especular ao sujeito para que a não-resposta a sua demanda seja menos dolorosa, parece ser uma proposta cabível em respeito às novas configurações subjetivas.

Tomando as considerações de que o novo dispositivo subjetivo se encaminha para um modo de funcionamento onde a dimensão do Outro está forcluída, visualiza-se no horizonte próximo, aquilo que se pode chamar de um sujeito sem domicílio, um sujeito que não encontra em si, e no mundo externo, um ponto que lhe sirva de referência, de ancoragem pela nau da vida. Esta nova modalidade de estar no mundo, que já se verifica no sujeito contemporâneo em sua errância psíquica e geográfica, na extrema fragilidade dos vínculos emocionais e profissionais, assim como na grande dificuldade em se envolver com projetos que demandem tempo e comprometimento, deve fazer questão em relação ao contrato analítico. Este que vem hoje a um consultório, não está arranjado em uma via desejante que lhe permita sustentar o comprometimento que uma psicanálise exige, ou seja, a sustentação de seu desejo se conduz por vias extremamente débeis. Assim se faz sensato deixar as combinações referentes à freqüência das sessões, duração do tratamento, forma de pagamento, comprometimento com o horário em caso de ausência, etc., para um segundo momento, onde as resistências já diminuíram e a transferência já suporta tal procedimento. Expor de antemão os investimentos que uma psicanálise requer é exigir do sujeito aquilo que ele não pode dar, o que seguramente lhe afastará e porá fim ao seu já quase insuficiente fôlego.

Estando à guisa de concluir, deve-se considerar primeiramente que, em sua natureza, a proposta de uma psicanálise já vai na contramão do discurso dominante. Contudo, nos tempos atuais, o imperativo social de que seja excluída toda e qualquer vivência de frustração e angústia na vida do sujeito, coloca em dificuldades ainda maiores a manutenção da experiência, assim como a própria aplicação da prática clínica. Seguiu-se portanto, no urgir por novas formulações, uma tentativa de circunscrever este primeiro contato do sujeito contemporâneo com a proposta analítica, no intento de se moldar algumas reflexões teóricas que considerem as novas formas de subjetivação em seu atravessamento pelas primeiras entrevistas com um psicanalista.

O trabalho de tessitura a que se propôs este ensaio, expôs alguns pontos dissonantes resultantes das amarragens teóricas e práticas a respeito do sujeito contemporâneo e das entrevistas preliminares na clínica psicanalítica. Isto posto, por si só, já torna legítima esta investigação, quando vem apontar que novas construções acerca do assunto devam ser produzidas no arcabouço metodológico da psicanálise.

Seguramente este breve escrito apenas arranhou a dura matéria a que se propôs circunscrever, porém espera-se que contribua como uma provocação para que as futuras pesquisas e discussões venham dar forma às novas recomendações aos que exercem a psicanálise na contemporaneidade. Se não for assim, serve ao autor como prêmio de consolação, a esperança de que, quem vier a se ocupar desta leitura, possa conquistar o discernimento de saber pelo menos o que não fazer no que concerne ao manejo das entrevistas preliminares.

Referências bibliográficas

FLEIG, M. (1994). Subjetividades: Espaços e tempos sagrados. Psicanálise e ilusões contemporâneas, 10, 36-46. Porto Alegre: Artes e Ofícios.
FREUD, S. (1969). Sobre o início do tratamento (Novas recomendações sobre a técnica dapsicanálise) (J. O. A. Abreu, trad.). In J. Salomão (Ed.), Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (vol.12, pp. 137-158). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1913).
LUTEMBERG, J. (2003). Questão de escuta. Diagnóstico em psicanálise: questão de escuta?,10 (1). Porto Alegre: CEP de PA.
MANNONI, M. (1980). A primeira entrevista em psicanálise (20ª ed.). (R. C. Lacerda, trad.). Rio de Janeiro: Editora Campos. (Trabalho original publicado em 1979).
WACHSBERGER, H. (1989). Função das entrevistas preliminares. Em M. B. Motta (ed.), Clínica lacaniana: casos clínicos do campo Freudiano (pp. 26 – 31). Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor.