A função da fala e o objeto voz na Clínica Psicanalítica | Mario Fleig

A função da fala e o objeto voz na Clínica Psicanalítica

Mario Fleig

       Freud foi o inventor da Psicanálise, uma prática de tratamento de problemas psíquicos que opera por intermédio do principio que ele isolou em sua clínica: a experiência de fala. Certamente que ele não foi o primeiro a ter se apercebido da importância da fala para os humanos, definidos já por Aristóteles[2] como seres capazes de logos. Em contraposição à psiquiatria e à neurologia de sua época, Freud pôde mostrar que o sintoma nada mais era do que a expressão somática – isso ele formula a respeito do histérico – de uma sequência linguageira. A decifração da frase, como um criptograma enunciado na fala, indicava a originalidade de descoberta de como dissipar o sintoma. Tocava-se, então, na função primordial da fala e seus poderes. O sintoma psicanalizável se caracteriza por ter uma estrutura idêntica a da linguagem tal como ela é falada, com incidências sobre fenômenos marginais como os sonhos, os lapsos e os chistes, assim como sobre os sintomas que se estruturam na forma de neuroses. O psicanalista é alguém a quem se fala e se fala livremente. Lacan, propondo um retorno à invenção de Freud, insiste em lembrar a simplicidade desta experiência, interrogando-se sobre o que constituiria a fala e sua função em psicanálise.
       A direção do tratamento requer, da parte do analista, uma conceptualização da especificidade da operação clínica. Partindo do conceito freudiano de defesa, Lacan afirma que é na medida em que uma atividade é erotizada, ao ser tomada no mecanismo do desejo, que a angústia, ponto chave na determinação dos sintomas e das inibições, intervem. É então que a defesa se organiza como defesa contra o desejo, noção central da teoria psicanalítica. Frente ao desejo, que emerge com a presença primitiva e obscura do desejo do Outro, o sujeito se encontra lançado no desamparo, matriz de toda experiência traumática. O desejo nasce neste mesmo lugar em que se produz o desamparo, e por isso mesmo é que o sujeito tenta desperadamente se proteger do desejo com o que tem à mão, seu eu, seu ser, ser corpo, etc. A defesa contra o desamparo, tendo na angústia a sinalização da proximidade do perigo, se constitui com os próprios recursos da linguagem – condensação, deslocamento, e outras formas de distorção isoladas por Freud –, e por isso mesmo que é através desta que o tratamento também encontra sua via principal.
       Sendo então a fala o meio em que se dá uma análise, qual é sua função específica e que poderes detém os personagens que participam desta experiência? Quais são os poderes do analista e como se concebe o exercício dos mesmos? Quais os poderes daquele – denominado por Lacan de psicanalisante – que se lança na experiência de fala de suas lembranças, sentimentos, impressões, pensamentos, enfim, de tudo o que lhe passa pela cabeça ?
       Partindo do uso cotidiano da fala na interação com o outro, vê-se que falar implica de saída um emissor e um receptor e a circulação de uma mensagem. A mensagem, por sua vez, para que possa funcionar como tal, pressupõe que os implicados no ato de falar partilhem um código comum que tanto permite a produção de significação como determina o endereçamento último de toda fala e sua autenticação.[3] É por referência à noção de código que Lacan introduz a sua noção de grande Outro, não apenas como sendo o que fornece a chave de decodificação da mensagem e a autenticação do discurso em pauta, mas como o lugar e tesouro dos significantes, marcado pela falta de ao-menos-um significante. A falta de ao-menos-um significante no campo do Outro determina a impossibilidade da existência do universo do discurso e indica o reconhecimento de que deva existir um significante alhures, o significante freudiano “pai”. A criança, ao lhe ser assinalada esta contigência, é introduzida no discurso que organiza seu modo de endereçamento, ou seja, ela é submetida à castração, para utilizar a expressão freudiana, na medida em que se defronta com a falta no grande Outro, operado de saída como sendo o Outro materno. Sabe-se que na psicose o sujeito é introduzido na linguagem, mas lhe falha a operação discursiva da metáfora. Isso tem como efeito principal sua não inserção no laço social, e assim sendo, seu modo de endereçamento ao grande Outro não encontra a falta de ao-menos-um signficante que lhe permitiria efetivar a operação de substituição, necessária ao jogo metafórico e metonímico. Como efeito subsequente disso, observa-se que sujeito organizado na psicose precisa se agarrar nos signficados, tendo sua expressão plena no delírio do sistema completo, universo do discuro efetivado, no qual um significante se solidifica no delírio de ser causa de si mesmo. O efeito é sempre o mesmo: a presunção de realizar a enunciação do sentido do sentido, da verdade da verdade, enfim, o advento da posição subjetiva da certeza, da inexistência de crença no outro ou de qualquer hipótese de um desconhecimento.
       Voltando ao uso cotidiano da fala, observamos que a função mais comum desta aparece no ato de comandar.[4] Quem toma a palavra, pelo próprio exercício desta, funda uma disparidade, e logo se descortina a dimensão imperativa. Aquele que fala tende a instaura a voz de comando. Assim, entra em operação uma das funções primordiais da fala: o comandar. Ora, a voz de comando, para ser bem exercida, requer ser acompanhada de uma segunda função da fala, a sedução. O discurso imperativo, adornado pela voz sedutora, impõe-se, especialmente na política, em uma forma absolutamente convincente, arrastando os indívíduos e catalizando as massas. A composição destas duas funções da fala poderia dar uma chave de decifração do mecanismo da sugestão, fenômeno que perpassa a eficácia simbólica presente nos rituais religiosos, na hipnose moderna, nas incorporações de entidades divinas nas religiões afro-brasileiras, etc.
       Para além destas duas funções da fala, o imperativo e a sedução, há este efeito paradoxal: se a fala, em seu próprio endereçamento a outro, parece visar a instauração da comunicação perfeita e igualitária, como pode ocorrer que nos mais das vezes se produzam lugares heterogêneos e disparidade entre os interlocutores? Em contrapartida, nas situações em que venha a ocorrer uma comunicação perfeita e exitosa, isso se dá às custas de um desaparecimento da dimensão sexual e do próprio erotismo entre os interlocutores. É o caso da perfeita comunição entre filho e mãe, ou quando o laço fraterno se torna a dimensão determinante em um casal. Estes são paradoxos que a descoberta freudiana da função da fala trás à luz e certamente ainda há muito a descobrir sobre isso.
       O retorno ao sentido da descoberta de Freud, proposto por Lacan, aponta primordialmente para a genialidade deste achado: a função da fala. O texto inaugural de Lacan, “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”[5] não cessa de insistir na função da fala. Por exemplo, sempre nos perguntamos sobre como uma criança aprende a falar. Lacan, surpreendentemente, afirma que jamais uma criança aprende a falar, visto que não se trata de uma etapa na maturação biológica e muito menos de uma função que seria instaurada de modo uniforme para a espécie. O que ela aprende é a responder. Responder implica que antes de tudo haja alguém que lhe fale, alguém que, supondo que no pequeno infans já exista um sujeito capaz, lhe endereçe uma pergunta, e que assim aposte que deste virá uma resposta. Por isso, falar é já sempre ser chamado para o lugar da responsabilidade, de quem se põe como respondendo a.
       Então, dada a fala e todos seus poderes, como é possível que haja um tratamento psicanalítico? Pode alguém, falando livremente a um outro, encontrar solução de seus sintomas? Pode alguém, efetivamente, através da fala, confessar seus desejos e chegar a formular algo que tenha efeito de interpretação dos mesmos, ou seja, que permite a dissolução dos sintomas que lhe causam padecimento? Não é nosso objetivo desenvolver aqui estas questões. Queremos dar um passo além e apontar para um elemento novo introduzido por Lacan: a fala requer um suporte, tão ou mais enigmático que esta, que é a voz. As referências lacanianas a respeito da voz, ao lado do olhar, aparentemente são periféricas. Contudo, parece que na questão da voz, Lacan toca no que constitui o cerna da experiência psicanalítica. Voz e olhar constituem as duas pulsões isoladas por Lacan, a pulsão invocante e a pulsão escópica: “Acrescento a pulsão escópica e aquela que será quase preciso chamar de pulsão invocante” que tem, acrescenta, “esse privilégio de não poder se fechar”[6]. O se fazer ver, circuito da pulsão escópica que se vira para o próprio sujeito, segue o mesmo padrão das demais pulsões já descritas por Freud, pulsão oral, pulsão anal e pulsão genital. Em contrapartida, a pulsão invocante, cujo circuito se organiza no ato de se fazer ouvir, vai em direção ao outro e seu retorno se dá como pulsão de escuta. Este é o privilégio e a especificidade desta pulsão: instaura um circuito que não pode se fechar.
       Ora, toda pulsão, em seu circuito, circunscreve e recorta um objeto, o objeto pulsional. Antes da virada da pulsão invocante em pulsão de escuta, temos a voz como seu objeto primitivo. De saída, poderíamos supor que a complexidade deste objeto pulsional primitivo encontraria seu ponto organizador no fato de que o orgão fonador tem condições de produzir seu próprio objeto sem nenhuma intervenção do Outro. Entretanto, como se produziria a diferenciação entre a voz do sujeito e a voz do Outro, como no caso das alucinações auditivas? Questão que deixamos em suspenso.
Lacan, no seminário A angústia, a respeito do Shofar, como voz de Deus, afirma que estamos “em presença de um certa forma do objeto a, ... voz em sua face enfim desvelada em sua forma separável.”[7].
       A voz, o que é ? Como esse objeto voz se estrutura na função da fala e no circuito da pulsão invocante e da pulsão de escuta?
      Em um de seus textos mais densos e talvez mais enigmáticos, O aturdito, escrito em 1972, Lacan propõe uma frase que desafia seus intérpretes: “Que se diga fica esquecido por trás do que se diz no que se ouve.”[8] Com esta frase, enunciada no subjuntivo, propomos um retorno ao objeto primitivo da fala, a voz, através do mito narrado do canto das Sereias presente na poesia homérica. A indicação do alcance da articulação da voz no canto das Sereias é feita pelo próprio Lacan. Encontramos uma primeira e rápida referência ao “canto das sereias” em seu seminário da Ética da psicanálise (lição de 13 de janeiro de 1960). Contudo, é no seminário ... Ou pior (lição de 8 de dezembro de 1971) que Lacan faz uma aproximação entre a posição de Ulisses, amarrado ao mastro de sua nau e exposto ao enebriante canto das sereias, e a função do analista na escuta da fala do analisante. O interessante é que a aproximação se dá a partir do verbo “seriner”[9], ao fazer referência à repetição fastidiosa, e ainda assim sem que seja anulado o desconhecimento, de que não há proporção sexual. Assim, “a etimologia de “seriner” nos leva diretamente a “sereia”, e continua Lacan: “Sem dúvida é por isso que o psicanalista, como Ulisses o faz em tal conjuntura, fica amarrado a um mastro ... sim ! ... naturalmente, para que isso dure, é que ele ouve o canto das sereias, isto é, ao ficar encantado, ao ouvi-las completamente enviesado, bem, o mastro, este famoso mastro no qual naturalmente os senhores não podem não reconhecer o falo, isto é, o significante maior, global. Bem, ele fica amarrado e com isso todo mundo se arranja. Isso arranja todo mundo pelo fato de que isso não tem nenhuma consequência desagradável, visto que é feito para isso, para a própria nau psicanalítica, isto é, para todos aqueles que estão no mesmo barco. Não é por nada que ele a ouve, esta cantilena (serinage) da experiência e que é por isso que, até agora, isso permanece um domínio privado para aqueles que estão no mesmo barco. O que se passa neste barco, no qual existem seres dos dois sexos, é, no entanto, notável.”
       Nesta referência a Ulisses, Lacan não faz mais do que indicar que reconhece algo da experiência psicanalitica no famoso canto das Sereias, ouvido e atravessado apenas pelo herói homérico. Uma terceira referência explícita ao mesmo será feita durante o seminário de 21 de dezembro de 1976[10], na intevenção do convidado de Lacan, A. Didier-Weill, que se pronuncia precisamente sobre a música e a questão do circuito pulsional. É a título de ilustração a respeito da divisão do sujeito entre aquele que é falante e aquele que é ouvinte que o mito de Ulisses e o canto das Sereias é introduzido: “Vocês sabem que Ulisses, para escutar o canto das Sereias, havia tapado com cera os ouvidos de seus marinheiros. Como devemos compreender isso? Ulisses expõe-se a ouvir, a ouvir a pulsão invocante, a ouvir, enfim, o canto das Sereias; mas ao que ele se expõe, vocês sabem que a história nos conta, quando ele vai ouvir o canto das Sereias, que ele berra para os marinheiros, que ele lhes diz: `Parem, vamos ficar`. Mas ele havia tomado suas precauções: sabe que não será ouvido.”
       É no Livro XII da Odisséia que encontramos a narrativa épica do encontro com a voz, no episódio da passagem de Ulisses pelas Sereias. No que isso pode ser de interesse para a questão da função da fala e no que pode contribuir para fornecer maior determinação à articulação entre a voz e a pulsão? Vejamos o que este relato mítico pode nos ensinar.
       Antes do célebre, apesar de narrado com brevidade, encontro com as Sereias[11], Ulisses atravessara os infernos, enfrentando todos os tipos de obstáculos. Diante dos gigantes, para se safar, havia declarado que seu nome era “ninguém”. Num tempo seguinte, pode se defrontar com seu nome e passar a falar em nome próprio. São travessias ricas de significação. Habitando uma ilha na entrada no estreito da Sicília, e antecede a passagem pelos dois maiores obstáculos para toda navegação, o turbilhão Caribdis e o monstro Sila, as Sereias atraiam os navegantes com seu canto e os precipitavam na morte. Essas divindades do mar eram representadas com um corpo de pássaro e uma cabeça de mulher (o corpo de peixe, como se tornou corrente em nosso meio, é uma representação da mitologia nórdica).
       A voz é um ser mítico, na forma como aparece na epopéia de Homero[12], por meio do canto das Sereias, do qual apenas dois mortais sairam com vida: Orfeu e Ulisses. O primeiro, ao se defrontar com o sedutor canto, por ocasião da expedição dos Argonautas em busca do tosão de ouro, toca sua lira de tal modo que consegue abafar a sedução mortífera das Sereias e assim ultrapassa o obstáculo (poder-se-ia pensar no recurso utilizado pelas crianças autistas que se rebelam contra a voz do Outro, cobrindo-a com suas melopéias). O segundo, Ulisses, seguindo as instruções de Circe, vence a sedução, mas sem deixar de ouvir as melodiosas vozes.
       Se o mito, como diz Lacan em Televisão, “é a tentativa de dar forma épica ao que se opera pela estrutura”[13], então, o que o encontro de Ulisses com o canto mortífero das Sereias pode nos ensinar sobre a voz, a função da fala e pulsão invocante? O que é falar ?
       A voz que toma corpo, assim poderíamos caracterizar o canto das Sereias.
       Na poesia homérica é narrado que as Sereias encantam os marinheiros por meio da doçura de seu canto, sentadas em um praia, tendo a sua volta um monte de ossos humanos e de peles em putrefação. Circe, a conselheira de Ulisses, adverte que “aquele que, por imprudência ouve seu canto, está perdido”. E para que Ulisses possa escapar desta morte sem sepultura, aconselha-o a tapar com cera os ouvidos de seus companheiros e ele mesmo ser amarrado ao mastro do navio.
       A travessia dos Infernos levara Ulisses ao encontro das sombras: a morte sem sepultura em seu amigo Elpenor; a doçura do reencontro ao rever sua mãe morta de tristeza por sua ausência; e a luz do saber que alcança ao encontrar o adivinho Tirésias. Nestes três encontros podemos ler a prefiguração dos três registros isolados por Lacan: o Real da morte e da putrefação, o Imaginário da completude com o Outro materno e o Simbólico da articulação significante em forma de saber.
       No canto sedutor das Sereias pode-se recortar as três dimensões (R, I, S) em três significantes que caracterizam este canto: o grito inarticulado (phthoggos)[14], a voz sedutora e enfeitiçadora (op’s) e aoide (o canto articulado).
       O termo grego phthoggos designa o canto enquanto grito, o barulho, o som diferente da voz, o barulho do vento, o uivo de um cão ou o canto de um pássaro, o puro som e até mesmo o grunhido do Ciclope. Aponta para a dimensão inarticulada da voz, associada assim com a morte. É o real da voz.
       Na ópera há uma emergência desta dimensão da voz, em sua desarticulação, quando a Diva alcança o máximo, que se desarticula no grito, provocando a emoção maior nos ouvintes. É um grito de gozo e morte, coagulação de um gozo que confunde a vida com a morte. Também pode ser ouvido no grito surdo do orgasmo.
       O grito das Sereias, como promessa de gozo sem limites, também tem uma função de apelo imperativo que é feito para a presença do Outro, atraindo e subjugando os marinheiros incautos. A dimensão de apelo encontramos no grito do bebê, endereçado ao Outro materno. As mães, que estão bem posicionadas em sua função, não resistem a este apelo. Neste caso, a dimensão simbólica da voz já está presente, de modo que o real da pura voz não dura mais do que um instante.
       O termo grego op’s designa voz em sua dimensão de fala, presente no canto dos humanos ou de uma divindade, ou mesmo de um animal, mas com sua dimensão de sedução. Nesse termo predomina o sentido físico com uma conotação de harmonia e frequentemente designa uma voz de mulher. É a voz doce falada, harmoniosa e até mesmo cantada, de preferência uma voz feminina.
       Op’s é o termo que aparece também no encontro de Ulisses com sua mãe morta, e coincide com a voz doce do reencontro, e por isso mesmo indica também a voz ancestral, primordial, do que aconteceria para o bebê antes da amamentação, em um tempo em que nada ainda estaria perdido. É a canção de ninar entoada pela mãe, a voz doce e sedutora, correspondendo então à dimensão imaginária da voz. Ao ouvir esta voz doce, a criança é levada, em extrema excitação, a mamar compulsivamente.
       Contudo, o ninar materno tem ritmo, picos prosádicos que já preparam o bebê, nesta modulação, para o corte significante, e através deste, seu desprendimento do Outro materno.
       A voz das Sereias, com o op’s, evoca o encantamento do tempo de outrora da voz materna: a voz do Outro materno segue-se ao grito de apelo, enodando-se mutuamente. Na fala primitiva do bebê se presentifica o enodamento dos três elementos presentes no canto da Sereias: o grito da criança (phthoggos), a resposta da mãe (op’s) e também sua pergunta (aoide), “o que queres, meu amorzinho?”
       O termo grego aoide designa não apenas o continente, mas o conteúdo, ou seja, não apenas a voz, mas o próprio hino, associado ao saber prometido, transmissão simbólica. O que as sereias prometem? Ao se aproximar, as Sereias, no canto entoado pelo coro, prometem a Ulisses um saber: “Venha aqui, venha a nós, Ulisses famoso, ... nenhum homem ultrapassou esta ilha ... sem escutar nossa doce voz .. e depois ele se afasta, cheio de alegria e sabendo numerosas coisas.” (Livro XII, 185 ss)
       Guiado pelas orientações que a astuta Circe lhe deu, Ulisses terá acesso a este saber que as Sereias prometem. O que é este saber ? Parece ser um saber sobre o nome e a origem, pois é pela travessia do ordálio do canto da Sereias que Ulisses se nomeia, tornando-se o narrador de sua história, e ao mesmo tempo descortina o caminho de retorno à Itaca, sua terra de origem. Vemos nesta nomeação um efeito de subjetivação que passa pela voz do Outro, de acordo com o que afirma Lacan, que o sujeito se constitui no lugar e a partir do desejo do Outro.
       A travessia realizada pelo herói homérico indica de forma épica aquilo que se opera na estrutura como enodamento borromeano dos três registro lacanianos: enodamento do real presente no inarticulado da voz com a consistência da sedução imaginária da voz materna, abrindo-se na pergunta sobre o desejo que concerne ao sujeito simbolicamente. Na fala articulada na enunciação, suportada no jogo metafórico e metonímico, enoda-se borromeanamente o nó que articula a verdade de cada falasser. A voz, articulada na função da fala, recorta o desejo no Outro, permitindo que o objeto voz como puro objeto se perca, assim como suspende a imaginariação desta enquanto voz acusatória do supereu. Caberia perguntar por que uma análise requer o exercício da função fala e a articulação do objeto voz, e não simplesmente uma operação da função do olhar? Não é aqui que poderemos desdobrar esta questão, e queremos apenas indicar a especificidade da função da fala em uma psicanálise, através da qual o sujeito pode enunciar com voz própria no exercício de sua fala endereçada a um outro. Esta é a base do novo método descoberto por Breuer e Freud no final do século XIX, inaugurado com o nome que a paciente Anna O lhe dá, “talking cure”: a verbalização das vivências e das experiências inconciliáveis, ligadas certamente aos sintomas, determinava a suspensão destes. Contudo, é certo que a complexidade implicada no ato de falar em uma análise não se esgota nesta primeira descrição e talvez tenhamos apenas tocado nas primeiras determinações que constituem um campo cujos limites definem tanto a relatividade das operações clínicas quanto a parcialidade da verdade do desejo em jogo.
       Para finalizar, lembramos que Lacan insistia que a única arma que a clínica psicanalítica dispõe para enfrentar a insistente e dura repetição do sintoma é o equívoco, que corrói a certeza da fala vazia e genérica e permite a emergência da verdade que diz respeito a cada falasser. “Com efeito, é unicamente pelo equívoco que a interpretação opera. É preciso que haja alguma coisa no significante que ressoe”[15], e é somente assim que a fala pode vir a ter algum efeito, e então arrancar o sujeito da fascínio do real da voz e do real do olhar. É no recorte que Ulisses fez, ao ver o rosto das Sereias e ao ouvir sua voz, que ocorreu a queda do real da voz e do olhar siderante, como queda de letras que se destacaram, determinando um litoral entre o gozo mortífero, prometido a qualquer um que ali se aventurasse, e o saber inconsciente. O abismo ultrapassado pelo herói indica a estrutura em jogo: existe um furo que assinala a ausência do falo materno, em torno do qual circula o gozo incessante atiçado pelo fascínio das Sereias. Para atravessar esse lugar é necessário o suporte de ao menos uma letra, Lacan a denominada de letra a, objeto causa do desejo, que faz borda neste lugar de puro gozo e assim determinada o desejo. É desta letra que cai, perdida de saída, não-sentido radical, que o herói encontra a direção de seu percurso e nos lega sua narrativa. Não é esta que deve ser lida, mas aquilo do inconsciente que se enuncia, como nos lembra Lacan no seminário Ainda: “Aquilo do que se trata no discurso analítico, é sempre isso – ao que se enuncia de significante vocês dão uma outra leitura do que aquela que ele significa”[16]. O psicanalista lê de outra maneira o que o analisante diz. Mas se é no dizer que o inconsciente é dado para ser lido, então a conseqüência imediata é que um escrito não é para ser lido, pois este apaga de saída a dimensão do dizer. A conclusão paradoxal, própria da natureza do inconsciente, é que não há como este ser lido nos escritos, mas simplesmente naquilo que se diz. Por isso Lacan nos alerta: “Que se diga fica esquecido por trás do que se diz no que se ouve.”

(Este texto é uma ampliação do que foi apresentado no Congresso Internacional Linguagem e Interação, UNISINOS, 2005).

[1] Psicanalista, presidente e membro fundador da Escola de Estudos Psicanalíticos, analista membro da Association Lacanienne Internationale (ALI), Coordenador da Pós-graduação Psicanálise, técnica e teoria (Unisinos). mfleig@terra.com.br
[2] Aristóteles em Política (1523a 10-18) diz o seguinte: "O homem é o único vivente dotado de linguagem (logos). A voz, com efeito, é signo de dor e prazer, é porque ela pertence também aos outros viventes (pois sua natureza vai até lhe fazer experimentar a sensação de dor ou de prazer que eles podem se significar uns aos outros); a linguagem (logos), ao contrário, serve para manifestar o que convém e o que não convém, igual o que é justo e injusto; o próprio dos homens em relação aos outros seres vivos é que eles têm a sensação de bem e de mal, do justo e do injusto e outras coisas do mesmo gênero; e a comunidade (koinomia) destas coisas faz a habitação (oikia) e a cidade (polis)".
[3] Sobre isso, veja-se em especial o clássico texto “Deux aspects du langage et deux types d’aphasies” de R. Jakobson (Essais de linguistique générale. Paris: Minuit, 1963)
[4] Cf. Charles Melman, Formas clínicas da nova patologia mental. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2004.
[5] J. Lacan, Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998.
[6] J. Lacan, Os quatros conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. p. 188.
[7] J. Lacan, A angústia; Seminário 1962-1963, lição de 22 de maio de 1963.
[8] Em J. Lacan, Outros escritos. Rio de Janeiro, J. Zahar, 2003. p. 448.
[9] Em francês, “seriner quelqu’un” significa importuná-lo com repetições cansativas e incessantes.
[10] J. Lacan, L'insu que sait de l' une-bévue s´aile a mourre, 1976-1977, inédito.
[11] Interessante observar que em português, sirene e sirena são variantes de sereia.
[12] L’Odyssée, “poésie homérique”. Paris: Les Belles Lettres, 1953.
[13] Em J. Lacan, Outros escritos. Rio de Janeiro, J. Zahar, 2003. p. 531.
[14] Para os termos gregos, consultamos A. Bailly, Dictionnaire grec-français, 26a ed. Paris: Hachette, 1963.
[15] J. Lacan, Seminário Le Sinthome, lição de 18.11.1975, inédito.
[16] J. Lacan, Encore ; Le séminaire livre XX, Seuil: Paris, 1975. p. 37.