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Do nascimento da via-láctea às teorias sexuais infantis
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Denise Mousquer

          Estamos diante de uma obra do artista espanhol Pedro Pablo Rubenz, pintura do século XVII que se encontra exposta no Museo del Prado em Madri. De estilo barroco, Rubenz enfatizava o movimento, a cor, a sensualidade e um traço oblíquo que se revelou peculiar em seu trabalho. É um artista conhecido por seus retratos e pinturas históricas em torno de temas mitológicos.

          De todo material que se pode ter acesso deste artista e desta obra em particular, resgato o comentário crítico feito por Octavio Paz, poeta, ensaísta, tradutor e diplomata mexicano, que nos assinala alguns aspectos interessantes sob a forma de metáforas para pensar a relação entre o sagrado e o profano, entre o divino e o humano, questões que podem acrescentar ao estudo que hoje iniciamos acerca das teorias sexuais infantis.

         Em um primeiro momento, faz uma descrição dos elementos que aparecem no quadro e o enredo que este encena - o mito sobre o nascimento da via-láctea. No centro da tela vemos “a Deusa Juno”, representada pela figura de uma mulher opulenta, “uma matrona flamenca”, característica do feminino em suas obras, que aparece semidesnuda em um leito invisível. Atrás da Deusa Juno, semiescondido, surge o Deus Júpiter. À frente, junto ao corpo de Juno, aparece Héracles, qualificado como um semideus. Alerta para um aspecto importante em torno da figura desta criança, pois, segundo a mitologia romana, Héracles seria filho legítimo de Júpiter, mas não da Deusa Juno. Enquanto uma divindade menor, era fruto do encontro do Deus Júpiter com uma mortal (Alcmena). A esta criança ilegítima algo faltaria, uma espécie de “defeito” associado à finitude humana. Para atribuir-lhe uma dignidade, a criança deveria receber o leite da Deusa Juno, ato que poderia lhe restituir o que faltava, qual seja, o dom da imortalidade.

          Conta o mito que enquanto a Deusa Juno dormia, Júpiter colocou Héracles para ser amamentado. A força e a ânsia da criança fê-la despertar. Ao ver o que ocorria, “apartou-se muito ofendida”, afastando a criança de seu corpo. O leite divino que tinha um destino certo - a boca de Héracles - é desviado e derrama-se como “um facho de luz sobre o espaço celeste”.

          A seguir, Octavio Paz nos conduz à elaboração de três metáforas como possibilidades de leitura dessa obra e de seu significado mitológico.

          1° Metáfora – Cada gota deste leite desviado se transforma em uma estrela, constituindo, assim, a via-láctea. Uma via, um caminho, portanto.

          2° Metáfora – O “carro” de Juno voa pelo céu na obra. Ao voar sobre essas estrelas divinas, espalhadas no espaço celeste, cria um caminho. Esta imagem pode ser lida como a metáfora de que o homem, ao caminhar, constrói o seu próprio caminho.

          3° Metáfora – Este leite materno, divino, ao derramar-se no espaço celeste, formaria constelações, “um caminho de estrelas”, segundo o autor, sendo cada estrela um signo celeste. Este conjunto de estrelas, então, poderia ser tomado como uma escritura: “as estrelas enquanto sílabas que formam palavras que formam frases”. No céu, haveria uma escritura na qual estaria dado o destino dos homens.

          A via-láctea é concebida como a imagem da fatalidade do destino humano. Caminhar na via-láctea é fazer um caminho de constante retorno. O homem enquanto caminha, busca regressar à sua origem. Nesta volta para saber sobre sua origem, “o fim e o início se entrelaçam”.

          Ao final de sua análise, nos dirá que a pintura, tal como todas as artes, é uma metáfora que nos interroga e que buscamos decifrar, por nos remeter a algo da nossa própria origem. Nesse sentido, penso que esta ficção nos traz alguns pontos interessantes para avançarmos em torno do assunto que elegemos para o nosso estudo. Preferi destacar uma questão que é justamente a característica principal da marca deste artista em suas obras, qual seja, o seu traçado oblíquo.

          Uma hipótese seria pensar nesse traço/marca como o necessário desvio que faz o olhar materno sobre o corpo de sua criança ao erotizá-lo, ao delimitar suas diferentes zonas erógenas. Este leite/olhar tem seu curso subvertido, desviado, tal como ocorre no destino das pulsões. Um olhar que desvia marca uma não correspondência ponto a ponto, ou corpo a corpo, deixando lugar para a falta, para o desconhecido e o desejo de saber. A letra, enquanto significante, surge como efeito deste recalcamento.

          Na segunda lição desse seminário sobre as Atualidades das Teorias Sexuais Infantis, estudo que propomos para o próximo encontro, Bergès e Balbo nos reportam à obliqüidade do olhar materno, pontuando que “o recalcamento do sexual obriga a esse desvio...podemos supor que as teorias sexuais infantis participam desta obliqüidade”.

          Em setembro de 1997, Jean Bergès e Gabriel Balbo reuniram em nove lições alguns questionamentos e comentários críticos em torno de certos textos fundamentais de Freud: Os Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905), Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância (1910), Formulações sobre os Dois Princípios do Funcionamento Psíquico (1911), A Denegação (1925) cotejando com algumas passagens dos seminários da Transferência e do Ato Psicanalítico de Lacan na década de 60.

          Essas lições que serão o nosso eixo de estudo do Campo Temático Psicanálise da criança e do adolescente ao longo deste ano, foram sendo formuladas no curso da elaboração do texto Jogo de Posições da mãe e da criança - Ensaio sobre o Transitivismo (1997-1998). Elas reúnem questões que se produziram a partir da construção teórica acerca do transitivismo, conceito que irá atravessar a leitura dessas nove lições.

          Decidi retomar o termo “sexualidade infantil” em Freud que, enquanto conceito psicanalítico, emergiu no segundo dos três ensaios de 1905. Neste texto e sobretudo a partir do texto sobre o narcisismo de 1914, a sexualidade infantil deixa de ser um termo descritivo, usado para designar comportamentos sexuais na infância, para ser empregado como um conceito explicativo, remetendo ao particular da sexualidade humana. Ou seja, a sexualidade infantil deixa de ser uma manifestação exclusiva da infância e passa a ser característica do que define a sexualidade humana, por se tratar de uma sexualidade não plena, parcial e incompleta.

          Interessante pensar que até Freud apontar para a existência de uma precocidade sexual em toda a criança, a sexualidade infantil escapava à observação dos pesquisadores de sua época. Não havia qualquer suposição sobre sua existência. Logo, não havia o que investigar. Esse enigma mostra até que ponto a observação científica pode ser driblada pelo recalcamento, pela interdição e censura vigente. A clínica psicanalítica com Freud veio subverter e interrogar as certezas da ciência em torno do sexual na infância.

          Retomando ainda Freud no curso da elaboração dos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, e esse retorno ao texto freudiano é necessário para avançarmos nas questões que Bergès e Balbo formulam, Freud nos diz que será pelo questionamento sexual desencadeado pelo nascimento de um outro, um irmão por exemplo, que a criança será conduzida ao lugar de um pesquisador, de um fazedor de hipóteses, cuja origem nos remete a questões em torno da diferença sexual, da castração portanto.

          Na esteira destas perguntas que o pequeno pesquisador começa a formular e endereçar, Bergès e Balbo conservam essa questão central, ou seja - “De onde vem as crianças?”- e acrescentam uma nova interrogação que nos permite avançar na leitura sobre a teorização do sexual na criança: “Seria essa uma invenção da criança ou essa teoria sexual infantil tem a ver com a hipótese que a mãe faz sobre o saber de sua criança?”

           Pode-se pensar que o que impulsionaria uma criança a saber tem algo da ordem do discurso do Outro, da mãe em particular, mas sobretudo de sua condição de oferecer um lugar na teoria que faz de uma demanda de saber na criança. A mãe é também uma fazedora de hipóteses... Ao aceder a esta posição, a mãe empresta um saber a sua criança, permitindo-lhe tornar-se outro. Esse saber suposto pela mãe será sempre da ordem do sexual. Ao entrarmos no terreno da suposição (hipótese), nos aproximamos do conceito de transitivismo que acompanha a leitura proposta pelos autores acerca das teorias sexuais infantis.

           Dito de outro modo, a mãe necessitará fazer a hipótese de que o seu filho lhe dirá um dia porque e como ela o concebeu. Ela irá esperar (temporalidade x desejo) que esta criança fale ou lhe diga porque motivo ela aí está. Os autores fazem uma observação com relação ao termo porque, ressaltando que não se trataria de uma interrogação, pois o desejo de saber se volta para a causa, para a origem. Esse porque é senão de causalidade.

           Em outras palavras e ainda sobre o transitivismo (encontro isso no texto Psicose, Autismo e Falha Cognitiva de Bergès e Balbo, 2001), a mãe que transitiva dá a sua criança um lugar na teoria que faz de haver uma demanda de saber na criança. Mas, o que se passa quando uma mãe não se faz competente para transitivar? “A mãe que não transitiva, não estaria apenas no lugar do Outro, mas ela seria o próprio Outro...de modo que toda a hipótese que fizesse constituiria em um buraco nesse Outro, ou seja, numa falha nela mesma...” Seria uma mãe cujo discurso assertivo a resguardaria de qualquer trabalho de suposição, logo da fazer hipótese de um desejo de saber em seu filho. Este reduzido a ser senão um objeto para a sua mãe, objeto a, exterior e estrangeiro, cujo saber não terá acesso, porque este saber é propriedade dessa mãe-toda.

          Diante desta questão central sobre o que levaria a criança a assumir esse lugar de teórico a respeito de sua origem sexuada, queria resgatar a leitura proposta em torno do conceito do corpo pulsional, colocado como um monumento do desconhecimento na criança, diante do qual a mãe, por desconhecê-lo, vem supor-lhe um saber. Ou seja, nos falam de um “corpo pulsional que na relação com o outro materno, produz teoria”, o que nos permite pensar que as teorias sexuais tem sua origem neste orgânico e neste pulsional, no corpo erotizado pelo olhar materno que lhe supõe um desejo de saber. Ainda sobre este corpo pulsional, teórico e erotizado, o desconhecimento se refere também ao transitivismo, naquilo que foi experienciado pelo corpo, algo da ordem da pulsão, portanto.

           Bergès e Balbo insistem na relação entre o transitivismo e o desconhecimento como faces de uma mesma moeda, apontando que haveria um fator comum em ambos que é sustentarem-se em algo experienciado pelo corpo. “O que é experienciado pelo corpo é, ao mesmo tempo, o que dele é desconhecido”. Por ser desconhecido é passível de ser teorizado, feito hipótese. As palavras oferecidas pela mãe (simbólico) passam do cuidado ao desejo de saber.

          Na demanda transitivada, o traço específico é ser uma hipótese, uma suposição. Assim no filho que nada manifesta de uma dor, por exemplo, uma mãe que transitiva não irá supor que ele disso não queira saber. Ao contrário, irá supor que ele deseja saber algo disso que se passa em seu corpo, algo que nele, ele experiencia. Então, falando-lhe da dor, a partir do que a mãe mesma experienciou, lhe dirá sobre essa dor, ao que a criança irá responder, manifestando-lhe algo sobre isso, por identificar-se ao que a mãe lhe falou.

          Por esse mesmo caminho, uma mãe apropriada de um discurso interrogativo, resultado de um saber não-todo nela, supõe que sua criança queira saber algo sobre sua origem sexuada e que, para tanto, seja capaz de construir teorias a respeito. Apropriada deste lugar teórico, a criança lançará questões aos adultos que lhe cercam. A insuficiência das respostas que irá colher poderá produzir um efeito de abandono ou renúncia ao desejo de saber, ou, ao contrário, poderá excitá-la à elaboração de uma teoria a respeito do sexual que lhe afeta.

          Essa teoria, qualquer que seja, surge da negação da criança diante da resposta dos pais: “Não, esta não é uma boa resposta...” É de uma verneinung que se trata, sendo este um outro conceito que perpassa a elaboração deste seminário.

          Neste ponto, considerei importante retornar a Freud de 1925, quando trabalhou o conceito de denegação. Neste texto, propõe pensar o eu, sua constituição, seu funcionamento, o que lhe é exterior, o que lhe está dentro e sua relação com os objetos, a partir de um movimento de dupla negação. O que estaria em jogo na verneinung (sua função) é já estar operando na linguagem antes mesmo de existir uma fala na criança. Propõe pensar a denegação como um “fingimento do inconsciente”, na disparidade da criança com sua mãe no lugar do Outro, fingimento realizado para se opor, colocar-se contra. Essa oposição é operada, por exemplo, pelos movimentos posturais, pelo olhar, pela cólera na criança.

           No texto O Corpo na Neurologia e na Psicanálise (2005), Bergès nos dirá que “é sobre a negação da resposta e a denegação do que os pais sabem, apesar de tudo, que se constitui o essencial das teorias sexuais infantis e que disso irá se formar a hipótese, quer dizer, o empurrão-para-pensar na criança”.

          Sob o ângulo do transitivismo, a verneinung suporta uma necessidade lógica para se opor ao “golpe de força” da mãe. Ou seja, esse golpe de força, forçagem simbólica, só opera se, para a mãe, em qualquer hipótese que fizer, a criança possa dizer: “Não, não é esta a minha demanda”. Então, a mãe também faz a hipótese de que a criança possa dizer não. Esta é a origem do verneinung. Esse não simbólico encontra-se antecipado pela mãe em seu “golpe de força”.

          A partir dessas considerações iniciais, daremos prosseguimento ao trabalho em torno do seminário sobre as Atualidades das Teorias Sexuais Infantis de Jean Bergès e Gabriel Balbo, avançando nas discussões em torno dos pressupostos teóricos que elaboram e fundamentam ao longo de seus escritos.

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